sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Sangue e Morte

Durante o início da Primavera, o calor começa a invadira os dias, prenunciando o Verão, mas as noites continuam frias, para lembrar o Inverno. E como ela ainda é uma estação muito seca, as manhãs surgem nebulosas. Depois, a neblina de dissipa e o calor vem.

Foi em uma dessas manhãs que eu acordei naquele seis de Setembro. O calor, que chegara havia algumas horas, me fizera suar demasiadamente sob meu espesso cobertor de inverno. Acordar dessa forma é desagradável. Confuso, fui até o espelho do banheiro e, limpando o vapor, vi que parecia desidratado, minha pele parecia seca, mais do que o normal. Mesmo assim, vi que era necessário sangrar. E assim, o dia começou, com sangramento. Não gosto de sangrar desse jeito, mas ela gosta que eu sangre, e eu precisava disso, por ela.

O resto da manhã e o almoço foram impublicavelmente ordinários. Minhas feridas doíam e me traziam a esperança de o meu sofrimento haver de ser recompensado. Minha recompensa seria a morte. O vislumbre da morte suscitara o meu martírio. Mas eu não morreria só. Mataria, levaria alguém comigo. E não apenas uma vez, eu mataria várias vezes, numa orgia de sangue e morte.

Parti ao encontro da minha vítima. Fui até sua casa. Encontrei-a sangrando, ela me olhava já ciente do nosso fado. Eu, por minha vez, tinha certeza que ela buscava a morte muito mais do que eu. No entanto, ela me olhava de modo servil e amedrontado, o que aumentava ainda mais a minha crueldade.

"Olha pra mim! Você sabe que vai morrer! Por que tamanha surpresa?! Aceite seu fado e curta sua morte! Prometo a você que ela será o mais sangrenta possível..."

"Estou já sangrando, amor. Não me mate!!"

Aquela foi a minha primeira e última fala do dia. Dali em diante, desaprendi a falar, a ler, escrever e todas as formas humanas de linguagem. Enxerguei apenas minha vítima e meu banquete, a cada minuto mais raivoso daquele olhar.

Começamos nossos assassinatos com violência. Aí então, a verdade se relevou: ela me matou. Eu sabia, sabia que a insanidade dela era tão maior que a minha que ela me mataria cedo assim, fazendo-nos perder tempo. Mas morrer faz parte do processo.

E tantas vezes matamos e morremos. E nos ferimos e fizemos jorrar nosso sangue. Brindamo-lo e bebemo-lo e cálices de fogo. Jamais houve cenário mais aterrorizante que aquele. Corpos e vísceras misturados, o chão encharcado de sangue.

Como era de se esperar, ela morreu mais vezes que eu. De certo modo, isso me deixa satisfeito, pois cumpri meu pequeno ofício assassino. Matando, eu faço minha vítima viver, pois quanto mais morremos, mais vivemos. Viva a morte! Vamos beber nosso sangue e banquetear sobre nossos cálidos corpos! Matar e morrer quantas vezes forem necessárias, pois só assim chegaremos à vida.

domingo, 15 de junho de 2014

Por aquele criado por lobos


            Certo dia, um jovem pombo voava sobre os musgos dos telhados de casarões do século XVIII, em meio ao centro de uma grande cidade. Era fim de semana, e às atividades comerciais que pulularam ao longo da semana, já deixaram transparecer os habitantes dos grandes centros.
Do alto de uma estátua de um velho general, a ave divisa um velho calvo, sentando em um banco de madeira, a jogar comida no chão da praça vazia. Era o mesmo senhor que sempre o alimentava nos finais de semana. Cada dia tinha o seu fornecedor de alimento. Não havia alternativas. O cardápio era o de sempre. Alpiste. E o dono daquele restaurante improvisado já esperava por seu único freguês.
Eis, no entanto, que, durante sua refeição ordinária, algo que nunca antes vira aconteceu. Um outro velho, exatamente igual ao primeiro se aproximou. Sim, era exatamente igual, calvo, imberbe, com um sorriso peculiar e óculos retangulares, com o mesmo terno cinzento e os mesmos sapatos. O segundo velho se aproximou lentamente e, de súbito, tentou chutá-lo, mas sua agilidade de pombo se esquivou bem daquele golpe. Após esse ato vil, o segundo velho cumprimentou o primeiro, “Como vai, Foucault?!”, “Vou bem, amigo Foucault!”, os dois se abraçaram, sentaram no banco e começaram a conversar alegremente.
Ainda um pouco atordoado pelo golpe, nosso amigo pombo se afastou. Mas então, o pior aconteceu: um terceiro velho, também igual aos demais apareceu, passou por ele e não fez nada. E quando a pequena ave tentou fugir, viu que havia um quarto. Então voou. E viu que aquela praça estava repleta de Foucaults.
O jovem pombo viu que alguns deles conversavam com alegria; outros, tristes, andavam cabisbaixos pelos becos escuros; alguns, bêbados, dormiam na calçada; outros se abraçavam e conversavam; outros trocavam socos e pontapés; havia aqueles que trocavam beijos a apalpes; e aqueles que, de diversas maneiras, faziam sexo na praça pública.
E vocando baixo pela praça, ele recebeu mais chutes e mais alpiste. Mas, não. Aquela multidão de Foucaluts o deixava confuso. O falatório, os gritos, os risos, tudo isso o atordoava. Assim ele voou para longe e para o alto.
Desde então, nunca mais aquele jovem pombo retornou àquela praça. Quando se pode beber a água da chuva, é possível ficar um certo tempo sem comer.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Saudades de Pernambuco

Jovem ela era, e bela. Vênus me presenteara com uma ninfa de rara beleza, mas não tão rara a ponto de lhe causar inveja. A beleza simples de um sorriso, um gesto de carinho. Recebi minha graça com alegria e guardei-a no coração. Os dias passam. Nosso amor crescia e amadurecia. Nossa relação estabilizava-se. É chegado o dia, enfim, de conhecer meus sogros, o casal que concebera a minha rosa.

Chego à casa. "Bons dias e boas noites". "Quem é você? Quem são seus pais? É de família nobre? Qual a profissão deles? Qual a sua renda familiar? O que você faz da vida, seu vagabundo?!?!?! Você não quer apenas... ['ter conjunção carnal'] com a minha princesinha não, né?!?!"

"Não, senhor. Eu amo a sua filha de verdade. Eu não quero apenas... ['pecar'] com ela. Espero, com meu salário de professor de Latim, proporcionar a vida feliz e confortável que ela merece. [...]."

Mal-estar e sorrisos amarelos passaram a marcar a minha relação com meus sogros. A partir daquele momento, meu namoro foi abalado, apesar de não derrubado. Cada vez que eu os visitava, ouvia desaforos, sentia-me ofendido. E ela, doce e carinhosa como sempre, tentava me acalmar e me consolar. Eu devia compreendê-la, afinal, eram seus pais. Mais isso não diminuia um certo ódio crescente dentro de mim. Resistir era necessário, e abaixar a cabeça. Pois se eles me tratavam desse jeito, do que seriam capazes, caso eu me insurgisse contra eles?

Enquanto isso, eu e minha dileta ficávamos cada vez mais fortes, cada vez mais íntimos... era natural que, com o passar do tempo, algo acontecesse...

Eis que, recém-habilitado, pego-a, com meu celta branco, após a aula na UFF. Levo-a a um restaurante, na Ponta d'Areia, frutos do mar. Ela não bebia, mas começou naquela noite. E se embriagou tão rápido que eu me senti cruel com isso, como se realmente o pai dela tivesse razão.

Sem luxo, nossas núpcias consumaram-se num motel de quinta categoria, perto da Rodoviária, no boêmio centro da cidade. Naquele momento, uma força misteriosa se apoderou de minha menina e a fez retirar o meu cinto com muito mais desenvoltura do que eu tirei o seu sutiã. Antes do que eu planejara, ela começou a me felar. E ria, e sorria a cada espasmo que eu tinha, e se divertia.

Com um nó e jogada ao lixo a primeira camisinha, eu me levantei e me ergui diante dela. Ela se encolheu diante de mim. Foi nesse momento, que me lembrei de seus pais, e de seu discurso viperino. Uma raiva me subiu à mente, fazendo que eu perdesse o controle e desse um tapa com toda força na cara dela!

Um arrependimento súbito seguiu-se àquele momento. O que eu fiz? Agredi aquela menina tão doce e frágil que eu amava tanto! Vi-a enxugar a lágrima. Eis que, no entanto, ela olha pra mim e sorri: "Vem, meu amor".

Então com a mesma ira do tapa, eu segurei seus dois pulsos com uma de minhas mãos, apoiei-a de bruços sobre o braço do sofá, e comecei a fazer com ela todas as coisas que seus pais tanto temiam.

Durante o nosso sexo, temi muitas vezes agir com força em demasia. Ela, por vezes gritava, por vezes gemia suavemente, causando-me dúvida se realmente estava gostando. Mas ela sempre pedia por mais...

E naquela noite, a menina delicada e sorridente me exauriu. Gastamos nove camisinhas. Naquela noite, mais um casal de pais se fez infeliz...

No dia seguinte, voltei à casa de meus sogros. Assim que os vi, sorri ironicamente. Meu sorriso os assustou de tal forma que eles entenderam, telepaticamente o que acontecera. Confesso que me senti soberbo, como dissesse "Aí, irmão, danifiquei sua filha!".

Mas o estranho é que eles passaram a me respeitar depois desse dia. Hoje, muito tempo depois, essa menina carrega um pequeno latinista dentro dela, fora o outro que já está um rapazinho.